1. Sob o título “un droit en tromp-l’oeil”, acabo de ler na revista Droit Pénal (jul-Ago 2020, p.6), um artigo de Philippe Conte, comentando uma recente alteração legislativa ao Código de Saúde Pública francês, a dispor que a norma de direito penal comum sob crimes negligentes (1) é aplicável tendo em conta as competências, o poder e os meios de que dispõe o agente dos factos na situação de crise justificativa do estado de urgência sanitária, e bem assim da natureza das suas missões ou das suas funções, nomeadamente enquanto autoridade local ou empregador. O autor dá-nos conta de que esta norma é de todo ilusória porque resultava já do direito comum que delimita o conceito de negligência, mas que foi introduzida por reivindicação de dirigentes e eleitos locais, preocupados com uma possível responsabilidade penal em consequência das suas decisões que, tomadas no contexto da crise sanitária atual, teriam produzido uma contaminação pela COVID-19, e, com ela, consequências infelizes, a morte incluída. Esta alteração legislativa foi decretada na sequência de uma outra proposta rejeitada que previa um «salvo conduto penal», uma imunidade penal, na circunstância de estado de urgência sanitária.
O interessante, e daí o título do artigo, é que o acrescento da norma do direito penal comum ao “Code de la santé publique” nada acrescenta ao direito vigente, servindo apenas para reforçar e alertar para que a responsabilidade penal por negligência não tem lugar senão se ” l’auteur des faits n’a pas accompli les diligences normales compte tenu, le cas échéant, de la nature de ses missions ou de ses fonctions, de ses compétences ainsi que du pouvoir et des moyens dont il disposait”.
2. Neste nosso tempo de “guerra ao crime”, tempo em que já não só não se acredita em milagres nem também em desastres, mas se exige sempre a responsabilidade penal de alguém (falha humana) quando algo ofende bens importantes como a saúde e a vida, e se ouve e lê na comunicação social a crescente exigência de responsabilização penal de alguém, pareceu-me útil recordar que o direito penal não conhece a responsabilidade sem dolo ou negligência e que a negligência é um conceito muito fluído e impreciso porque vistos os eventos a posteriori é quase sempre possível dizer que o agente poderia ter atuado de outro modo, mais diligente, para evitar o evento danoso. O juízo sobre a ocorrência de negligência exige em grande parte dos casos muita sagacidade e prudência do julgador e impõe, no mínimo, que se tenham em conta todas as circunstâncias concretas do facto que ditam os deveres de ação.
3. Não pretendo pronunciar-me sobre algum caso dos muitos que os media vão sugerindo como eventualmente criminosos, tanto mais que não conheço as circunstâncias de nenhum deles, mas tão só alertar que também a nossa lei penal dispõe que «age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz». Preocupa-me a circunstância de em muitas das instituições em que têm ocorrido situações graves provocadas pelo COVID 19, nomeadamente lares da 3ª idade pertencentes a IPSS, a sua direção ser confiada a voluntários que se entregam ao serviço dos outros, em regra sempre com dificuldades financeiras para manterem as instituições em funcionamento e também com frequência sem formação especializada para a direção de tais instituições. É essa a realidade nacional. Essas instituições prestam serviços notáveis à custa dos carolas que se lhes dedicam de alma e coração sem esperarem nada em troca a não ser o consolo moral de servirem quem precisa. E operam com frequência autênticos milagres com os escassos meios de que dispõem. Receio bem, e tenho sinais, de que perante as frequentes ameaças de responsabilização penal, muitos se abstenham de servir com medo das consequências por não conseguirem fazer melhor e obstar a eventos danosos, sendo censurados por não adotarem as medidas ideais que as circunstâncias não lhes permitem. A burocracia do Estado é, em geral, ronceira e por isso as ajudas só chegam quando os desastres já ocorreram e foram badalados pela comunicação social.
4. Alguns dirão ser obrigação do Estado ocorrer prontamente à satisfação das necessidades para prevenir tais danos, mas a realidade mostra que não fora a dedicação dos muitos voluntários que se dedicam a essas instituições de solidariedade, e a miséria e os desastres seriam incomensuravelmente maiores. É que essas instituições não se compadecem com horários de entrada e de saída nem com teletrabalho; exigem a presença constante mesmo para além das horas do expediente.
Que fique claro que não preconizamos qualquer espécie de imunidade ou salvo conduto penal, mas tão só que para determinar as obrigações e capacidade de agir dos dirigentes dessas instituições se tomem na atenção devida todas as circunstâncias do
caso, necessariamente concretas, como impõe a lei. É que, perante as muitas dificuldades do dia a dia, sobretudo em razão da escassez de meios, muitos serão tentados a arriar os cargos e optar em ir para casa gozar o conforto da família, descansar
ou ver a telenovela. O juízo de culpa não tem como pressuposto ou elementos o comportamento ideal, desenhado em abstrato nos gabinetes dos media ou dos procuradores ou em resposta ao desespero compreensível das famílias, mas o comportamento possível e exigível em razão das circunstâncias concretas, as circunstâncias que se verificam no terreno, tendo sempre em conta “des moyens dont il disposait”. Muitas vezes, quase sempre, são os meios disponíveis que condicionam a ação
possível, é a disponibilidade de meios que dita as obrigações exigíveis.
5. Os trágicos acontecimentos que ocorreram durante este período de crise pandémica em muitos dos lares de 3ª idade deve obrigar o poder a repensar toda a estrutura das instituições de apoio aos idosos, a vigiar e controlar todas as instituições,
seja qual for a sua natureza, dotando-os dos meios materiais e humanos adequados, e exigindo e criando condições para que todos possam viver a velhice em condições dignas. Por dever para com os nossos maiores e também por egoísmo e prevenção
porque, com sorte, todos seremos velhos um dia próximo. Não é solução, é pura hipocrisia, remeter para os tribunais para que punam os que não fizeram mais …porque não puderam, porque não souberam ou porque a ajuda lhes faltou. A culpa é de muitos, de nós todos, e por razões também muitas.
Nada de novo. Só para recordar e alertar, para não se cometerem injustiças para com aqueles que merecem o nosso agradecimento e as honras devidas aos justos pela sua dedicação aos outros.
Lisboa, 20.08.2020
Germano Marques da Silva
(1) Article 121-3
Il n’y a point de crime ou de délit sans intention de le commettre.
Toutefois, lorsque la loi le prévoit, il y a délit en cas de mise en danger délibérée de la personne d’autrui.
Il y a également délit, lorsque la loi le prévoit, en cas de faute d’imprudence, de négligence ou de manquement à une obligation de prudence ou de sécurité prévue par la loi ou le règlement, s’il est établi que l’auteur des faits n’a pas accompli les diligences normales compte tenu, le cas échéant, de la nature de ses missions ou de ses fonctions, de ses compétences ainsi que du pouvoir et des moyens dont il disposait.
Dans le cas prévu par l’alinéa qui précède, les personnes physiques qui n’ont pas causé directement le dommage, mais qui ont créé ou contribué à créer la situation qui a permis la réalisation du dommage ou qui n’ont pas pris les mesures permettant de l’éviter, sont responsables pénalement s’il est établi qu’elles ont, soit violé de façon manifestement délibérée une obligation particulière de prudence ou de sécurité prévue par la loi ou le règlement, soit commis une faute caractérisée et qui exposait autrui à un risque d’une particulière gravité qu’elles ne pouvaient ignorer.
Il n’y a point de contravention en cas de force majeure.